Crônicas

A Família Dó-Ré-Mi

A música, os Bragas e Cachoeiro parece que marcaram um encontro às margens do Itapemirim. O velho Braga, juiz de paz, ourives, maestro, homem de mil predicados e virtudes, era particularmente prendado em artes de harmonias e solfejos; um prodígio em composições concretas. Para impressionar a noiva, fazia ladear seu cavalo trotão, tirando do atrito das ferraduras com as pedras do calçamento os acordes do Hino Nacional, exatamente nos compassos exigidos pelos decretos oficiais. O som da tuba, ele conseguia reproduzir mediante duas enérgicas esporadas nas ilhargas do bucéfalo, que correspondia trovejando um ribombo cavo, profundo.

Numa ocasião, o maestro pressionou os calcanhares com tal entusiasmo, que a cavalgadura varejou merda na alta parede da casa assobradada da Rua Capitão Deslandes, a caminho do Guandu. A salpicadura persiste ainda, esmaecida, um tanto esfiapada, e o passante que fixar bem a vista, a meia-distância e em dia ensolarado, distinguirá perfeitamente o desenho de dois sustenidos e uma clave de fá.

Da família — que se confunde com a história da cidade —, o mais famoso acabou sendo o sobrinho Roberto Carlos Braga, o “Rei”. Dos filhos, só o Clésio não herdou o talento musical do pai. Esforçou-se, porém, em aprender os segredos do bombardino, que soprava horas a fio todas as tardes. Chegou a ganhar uma bolsa de estudos para freqüentar um conservatório bem longe dali, em São Paulo, cortesia dos vizinhos, que se cotizaram para presenteá-lo, pagando mesmo a passagem. De ida, apenas...

Mais tarde, desistiu das partituras de Mignone, Nazareth e Villa-Lobos e foi integrar com sucesso o brioso esquadrão do Estrela do Norte, ao lado do Mozart — irmão do meio — grande craque do futebol e virtuose do violão, que batuca até hoje para alegria dos inúmeros amigos, especialmente dos mais antigos, que ainda conseguem se lembrar do repertório de Gastão Formenti, Antenógenes Silva e Vicente Celestino.

No futebol, diziam alguns que o impetuoso insider Mozart teria feito memoráveis tabelinhas com Friedenreich e antológicos gols em Amado Benigno. O certo é que no escrete universitário — já no Rio de Janeiro — figurou numa linha atacante inesquecível, ao lado de Pedro Amorim, Otávio de Moraes, Heleno de Freitas e Paulo Tovar (o excelente Mozart era ‘gato’). Mas a grande façanha musical da família foi protagonizada pelo primogênito Jurandyr, exímio pianista requisitado por todas as corporações, bandas e filarmônicas desde Vitória até Niterói. Esse notável artista era responsável pelo acompanhamento musical dos filmes mudos projetados no Cine Madureira, ao qual emprestava sua destreza e o apuradíssimo ouvido para conferir animação às películas.

Antes da estréia, em sessão exclusiva, assistia às peripécias da fita, memorizando o andamento e adaptando o vasto repertório às alternativas dos dramas. Marcava e selecionava os momentos oportunos para a execução de um minueto, uma polca apressada ou algo mais requintado, segundo se sucediam cenas de emoções fortes, idílios, etc... (Teria sido o precursor capixaba de Jerry Goldsmith e Lalo Schifrin).

A tal proeza aconteceu na Semana Santa. Os padres que administravam o cinema tinham programado 'A vida de Cristo'. Foi criada uma grande expectativa e esgotaram-se os ingressos. Deu-se, entretanto, que o nosso Paderewsky precisou, na véspera, ir a Campos tratar de problemas inadiáveis e só retornou minutos antes de começar a tão aguardada sessão. Jurandyr nunca tinha visto o filme, e como fosse pouco versado em assuntos de religião e mau aluno de História, desconhecia o enredo. E pior: sentado ao piano, ficava de costas para a tela, enfurnado numa espécie de trincheira. Numa situação complicada como essa, de pouco lhe servia a experiência, salvo diminuir-lhe a ansiedade. Decidiu valer-se da intuição e acompanhar atentamente as reações da platéia à sua frente, tentando adivinhar por elas o seguimento dos episódios. Foi um fiasco. Resultou de tudo o clero intrigá-lo com a sociedade local e ameaçá-lo com a excomunhão. Tudo isso porque na hora em que a platéia inquieta agitou-se emocionada ao ser erguida a cruz com o Salvador nela pregado, o pobre coitado do Jurandyr, inadvertidamente, resolveu atacar de 'O tatu subiu no pau'.

 

 

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